Capítulo 3

A areia batida vai em direção ao sul sem que se veja um só obstáculo. De um lado, dunas estranhas cheias de uma vegetação rala e pequenas flores sem um mar alto, visto de uma margem plane e sem o altar das praias de baía. Meu olhar está parado em direção ao norte. Em seu reflaxo estão os mesmos vazios que encontram ao sul. Quase quinhetos quilômetros de extensão sem sequer um pequeno rochedo que remeta àquela imagem tropical contida nos folhetos turísticos. O mar revolto não desvia meu olhar firme que permanece em direção ao norte. As águas ali não têm o azul dos outros mares, nem a simetria das ondas calmas com suas cortinas de spray. O vento é o pai desta pintura turva e também o pai das lembranças que meu olhar vê nos vazios deste lugar. Viro o rosto lentamente enquanto uma névoa de areia corre rasteira levando alguns galhos secos sem que nada os detenha. Escuto o chamado de minha mãe vindo de um verão remoto:
– Venham pra dentro que já está tarde!
Ficávamos até o último raio de luz correndo por aqueles lugares, jogando taco e surfando. Naquele verão eu conheci Vitória. Lembro claramente do primeiro dia que conversei com ela.
– Já vamos!
Corríamos para dentro e parávamos em frente à porto do banheiro para disputar a fila do banho. Eu não fazia muita questão de ser o primeiro, preferia dar passagem pra depois poder ficar me esfregando, enquanto aquela água doce escorria pelo meu corpo arrepiado. Não sei exatamente por que vim para cá. O certo é que já estou aqui há dois dias e não tenho a menor vontade de voltar. Sinto uma intuição estranha que parece me desafiar, escondendo de mim as razões desta vinda. Como se tudo tivesse apagado e aqui, de alguma forma, ressurgissem histórias que preciso escutar. Realmente não lembro de nada recente, como os dias anteriores à minha chegada ou até mesmo os últimos meses. Está tudo obscuro além desta intuição rasa que não arrisca nenhum palpite. Olho para este mar turvo e me surpreendo ainda mais por ter voltado assim no auge do inverno. Fico projetando o meu tamanho em relação às coisas, ao horizonte longínquo que impõe sua imensidão sobre a minha insignificante estatura, ao marisco ansioso que não se importa com a lua e se enfia areia adentro com medo de ser apanhado por alguém como eu. Que saudade dos bolinhos de mariscos feitos por minha mãe naqueles verões… Lá o pensamento surgia leve e despreocupado. Tão leve que, só e lembrar, flutuo um pouco, anestisiado pela sua leveza.
Em noite de lua cheia saíamos para o arrastão dos mariscos. A corrida iniciava junto com a onda. Sobre o véu prateado que tomava toda a praia após o recuo da maré, nos jogávamos pegando quantos mariscos as nossas pequenas mãos conseguissem carregar. Posso até sentir o gosto dos bolinhos fritados na hora em que voltávamos para casa, depois daquelas pescarias com jeito de caçada. Já está ficando escuro e o sol não atenua mais o frio do vento. Volto o olhar para o norte e percebo que a falta de claridade já esconde a linha do horizonte, alvo dos meus desvaneios. Por que, afinal, estou aqui completamente sozinho e desconectado, como se acordasse subitamente na pele de outra pessoa?
Vou entrar e preparar uma bebida quente antes que a noite se instale. Estou com os braços cruzados e não sinto vontade de fazer nada além de permanecer na calma deste balneário abandonado. Surgem, na minha cabeça congelada pelo vento cortante, flashes de  uma época específica, quando veraneávamos, passeando sob o sol e as sombras da antiga casa. Foi exatamente nesta época que eu fiz minha primeira viagem com banda…